ES (Exercícios de Semântica)

João Vasco Coelho

João Vasco Coelho

Não há como evitar uma sensação irredutível de domingo-à-noite, sempre que uma palavra é colocada em uso sem especial cuidado ou guarnição, num curropio infecundo que se acalenta de soslaio. As justificações surgem, como sempre, muitas, apressadas. Tenho uma reunião, tenho de ir amanhã às finanças, um acerto de contas com o senhorio, arguidos, dizemos que é importante, inevitável, apenas para ocultar o mais natural estado de coisas ao léu.
Importante seria pensar que poderia ser a última vez que aquela palavra estaria ao nosso dispor, atenta disponível para o que mais importava dizer, dizê-lo para não o esquecer, ver o que ainda não se viu, pois ela, a vida carente que se refere de seios aborrecidos, cora sempre depois o que as palavras não podem.
Deveria ser um ofício nosso fazê-lo, garantir a salubridade do que é dito nas horas mais sozinhas, de riso entre parênteses, quando o céu dos outros nos surge como hipótese, numa inclinação íngreme, e nos dispensamos do incómodo de lhes dar um beijo e outro tanto nas feridas. Um dia, a janela abre-se, a última luz do dia jorra, abundante, descobre-se que as filhas já pintam as unhas, que ninguém sabe, à superfície dos lábios, o que dizer de um centilitro, isto é, as palavras são já outras.

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